Três de quatro olhos

Já dormia o casal depois de uma noite de núpcias, quando da fresta da porta espreitaram três olhos. Três olhos espreitaram, e entraram dois indivíduos, vasculhando todo o quarto, procurando toda a divisão, pelo ouro, a prata, pelas jóias, pelas caras roupas, os veludos, as peles, procurando os anéis, e até mesmo as porcelanas iam enchendo cada um dos sacos. Um pouco trapalhões, por mais de uma vez falaram um com o outro, acima do volume considerado aceitável para um roubo destes moldes. Mas a sorte, dizem alguns, parecia caminhar lado a lado com os dois ladrões de medíocre qualidade, cantava o ressonar do homem cansado depois de viril acto, e a sua amada mulher dormia sobre o seu peludo e ruidoso peito, sendo embalada para dentro dos seus próprios sonhos. Foi já quase à saída, já bem próximo do ponto de fuga, a escassos metros da porta que deu origem a toda esta aventura, que o vesgo, numa acrobacia tal, pontapeou sem querer um esférico objecto que rolou uns centímetros à sua frente. Um sussurro exclamou “Um olho de vidro!” ao mesmo tempo que uma mão o pegava do chão.

“Experimenta-o, experimenta-o”, sussurrou de volta o outro, mas na cabeça do zarolho, colocou-se uma idiota questão. Seria o olho da mulher, ou não? Analisaram-no ambos, debaixo da luz que atravessava as janelas da porta da saída, um dizia que a cor azul era com certeza do homem que ressonava, o outro comentava que o tamanho só poderia ser da órbita ocular da mulher.

Caso a verdade fosse esta última, o estigma era grande, e o vesgo recusaria-se sim a usar tal obscenidade, um homem com olho de mulher, não é homem não! Com medições e conclusões tiradas, os bandidos abrem a porta e fogem para o breu da noite, de olho de vidro na cara e sacos de pano recheados. Afinal sempre era de um macho o raio do olho.

Ao fim da rua, entre jogos de sombras e candeeiros, já bem longe, bem lá ao fundo, um salteador murmura o quão ricos ficarão, ao que o outro ladrão responde com um tão alto uivo uivado, que acordou da casa, agora menos recheada, o velho e cego de um olho cão.